Sessões de terapia robotizadas

Publicado em 11 de setembro de 2019.

foto: www.nasheradio.org

Muito já se especulou a respeito das profissões que deixarão de existir e quais seriam as atividades que poderiam ser substituídas por humanóides. E chegou-se até a dizer que mesmo profissões como a dos psicoterapeutas estariam, de certa forma, ameaçadas.

Mas eu duvido que nossa profissão de analistas, psicoterapeutas e psicólogos vá de fato deixar de existir sendo feita por humanos.  E isso vai além das razões que os consultores, analistas e especialistas costumam citar em suas previsões futuras.

Seja em seminários, artigos e apresentações futuristas, normalmente se enfatiza que as profissões que têm alto grau de complexidade e análise dificilmente poderão ser substituídas por robôs. Sabe-se que tarefas repetitivas e mecânicas, essas sim estariam em risco, enquanto que tarefas especializadas e que envolvem tomadas de decisões em cenários complexos, estariam asseguradas.

E de fato, não há nada mais complexo e desafiante do que a mente humana, que se ocupa em camuflar, reorganizar, maquiar e dissimular nosso mais profundos desejos, motivações e sofrimentos. Quando se pensa em terapia, deve-se imaginar uma caminhada a dois, no qual terapeuta e analisando caminham lado a lado. O terapeuta, como diz Fonseca, é responsável por segurar e direcionar o facho da lanterna que irá iluminar os aspectos mais obscuros que o paciente ainda não é capaz de enxergar.

Mas, ao contrário do que seria de se esperar, o terapeuta não é alguém que tenha um conhecimento prévio sobre o paciente, que tampouco é alguém absolutamente inconsciente sobre si próprio. Há sim aspectos obscuros de nossas personalidades, e são estes que o terapeuta ajuda a trazer à luz. Daí a importância da construção do conhecimento a partir da relação a dois. Sem o processo de terapia, acabamos repetindo padrões e formas de ser em nossas relações, o que muitas vezes nos traz desconforto, sofrimento e até grandes problemas de relacionamento.

Já o mundo das máquinas é feito de execução primorosa de tarefas em ambientes controlados: cálculos difíceis, operações matemáticas complexas, e movimentos precisos, bem mais estáveis que os dos humanos. Talvez seja por isso que, além da indústria fabril, eles também estejam sendo cada vez mais utilizados em cirurgias e até mesmo em consultórios para funções diagnósticas de imagem. Mas mesmo em cirurgia, a direção e a condução das pinças robóticas continua sendo feita pelo cirurgião, por trás da máquina. Ganha-se em precisão, estabilidade e esterilidade na operação, mas os processos de planejamento, análise e decisão continuam sendo algo caracteristicamente humano.

Mas não acredito que os robôs poderão nos substituir em terapia porque existe algo ao qual essas máquinas não estão sujeitas e que no meu entender firma-se como o pilar do eixo angústia/desejo e, portanto, também ponto central para a entrada e continuação em análise: a experiência da passagem do tempo. Por não serem seres vivos, as máquinas são também incapazes de abarcar em especial a experiência da finitude.

Em teoria, os robôs podem durar para sempre, fazendo-se sua correta manutenção e troca de componentes e peças, mas não conseguem compreender o que significa envelhecer, emocionalmente falando. No caso de nós, humanos, independente do zelo, cuidado e carinho com que tenhamos em relação aos nossos corpos e mentes, contamos com um tempo de vida limitado e de relativa curta duração.

Isso faz com que sejamos assolados por desejos, angústias e dúvidas, que se manifestam exatamente em relação à passagem do tempo, ao envelhecimento e à finitude. Nossa aflição se manifesta em relação a tempo, porque temos os dias contados… E isto tem um impacto brutal sobre como experienciamos psicologicamente a própria vida. Nossas avaliações de satisfação, de sucesso e de fracasso, de felicidade ou tristeza estão ancoradas nesse valor intangível que é a passagem do tempo, do qual só nos damos conta a posteriore.

Aliás, talvez seja exatamente essa certeza de nossa própria finitude como humanos, o que nos impulsione e nos motive acordar todos os dias de manhã para seguirmos com nossas vidas: trabalhando, cuidando de nossas famílias, planejando nosso futuro e curtindo nosso presente (sempre que isso se faça possível). Sem a finitude, uma vida eterna (robótica) poderia ser pautada por um eterno fazer mecânico, adiando eternamente a nossa busca pela satisfação de expectativas e vontades, com o eventual e consequente aniquilamento do desejo. Um robô, não deseja, não sente, ele simplesmente é programado para a execução de tarefas (por vezes altamente complexas), não para maiores reflexões.

Dessa forma, como seria possível a qualquer máquina, que sequer é capaz de decodificar a angústia de se estar materializado num corpo finito, por um tempo indeterminado, nos ajudar a enfrentar nossos maiores demônios? Nós somos pautados pela sensação, pela dúvida e pela urgência temporal.

Por essas e por outras que continuo acreditando absolutamente na potência e na capacidade do contato pessoal: dos olhos nos olhos, da compaixão e da empatia. E isso, só se consegue quando estão em questão duas ou mais pessoas. Só aquele que é humano pode ser empático, acompanhar e acolher o plenamente o outro na exploração de suas angústias, desejos, dúvidas, sofrimentos e realizações. É apenas outro ser humano que pode conseguir, de fato,  jogar luz sobre os aspectos mais importantes e muitas vezes mais indecifráveis de nossas personalidades complexas.

Parafraseando o filme Na natureza selvagem, “a felicidade só é verdadeira quando compartilhada…” O mesmo vale para possibilidade de observação, enfrentamento e eventualmente resolução de nossas dores mais profundas. É só a partir do vínculo que podemos desenvolver a capacidade de nos percebermos, e portanto, vivermos vidas mais autênticas e consequentemente mais felizes. Esse tipo de olhar também, só é possível, quando a caminhada é compartilhada.

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Ilan Segre é Psicólogo Clínico formado pela USP, pós graduado em Fitoterapia pela Fac. Mario Schenberg. Complementou sua formação como psicólogo residente no Gupta Yogic Hospital (Lonavala), Jipmer Hospital (Pondicherry) e no Nisargopchar Ashram (Pune), na Índia. Foi um dos fundadores do NUMIER – Núcleo de Medicina Integrativa do Hospital Emilio Ribas e, em 2012, publicou o livro Terapia Integrativa (ed. Ágora).  Atualmente atende em seu consultório, unindo Psicoterapia Clínica com técnicas integrativas para remissão dos sintomas.

 


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